Por Gerivaldo Neiva
// Colunistas Just
Perdendo o medo no namoro com o mar!
No final dos anos 70, ainda com resquício de chumbo nos ares então respirados, em que se lutava pela anistia e se reconstruía o movimento político destruído pela ditadura militar, um adolescente metido a homem feito saiu do sertão da Bahia – sem nunca ter se afastado de casa e da “barra da saia” da mãe por um dia sequer – destinado a estudar na capital. O novo lar seria uma república de estudantes (muitos, por sinal) em que a mãe e o pai, embora fortes na saudade, seriam apenas lembranças e conselhos: – cuidado, muito cuidado, com tudo e todos na cidade grande! Tanto cuidado assim quase fez o medo superar todas as outras expectativas. Os novos amigos, a escola, os estudos, a cidade grande, o mar, as mais diversas experiências, uma profissão, o futuro, novos amores, e todas outras coisas, eram sentimentos e expectativas sufocadas pelo medo. Medo de tudo e de todos, principalmente do novo.
A primeira superação, por imposição irrecusável, era descobrir caminhos e atalhos que o levassem ao colégio. Foi construindo seus caminhos e aprendendo que só caminhando encontraria novos caminhos e superaria outros medos. Aprendeu que deveria andar sempre com documentos, pois não passava de mais um no meio da multidão. Em uma pequena cidade do sertão da Bahia, lá somos filhos, netos, primos ou sobrinhos de alguém que todos conhecem. Ser abordado por um policial militar naquela época, talvez ainda hoje, era motivo de medo e apreensão. Os ventos e as consequências da ditadura ainda pairavam sobre a liberdade. Todo cuidado era pouco com a polícia.
Passados alguns dias, mais sereno depois de um grande impacto com a nova vida, resolveu fazer algumas incursões pelas proximidades. O primeiro dia de aula, o primeiro susto no semáforo, muitas caminhadas e calos nos pés, causaram estragos que jamais seriam esquecidos que, mesmo sem saber, definiriam seu comportamento e sua forma de ver o mundo. Nesta ânsia de saber o que havia do outro lado da rua, andou alguns metros para o lado desconhecido, diferente daquele que levava ao colégio, e, poucos minutos depois, chegou a uma praça fabulosa, que o levou ao êxtase. Como era grande e movimentada. As árvores eram imensas. Artistas se apresentando, pastores pregando, pobres mendigando, crianças brincando, pessoas se exercitando… Nunca tinha visto nada igual! Voltaria várias vezes a esta praça e jamais se esqueceria desse primeiro encontro.
Alguns dias depois, com muito mais coragem e menos medo, incursionou para além daquela praça fantástica. Caminhou por um bom tempo por uma avenida em que as árvores se encontravam na copa e faziam um efeito de túnel vivo, edifícios bem cuidados e tráfego intenso. Eram Oitis e Mangueiras, as árvores que conhecia. Mais adiante, um largo e uma Igreja com nome bem a calhar: Nossa Senhora da Vitória. Encorajado, desceu uma ladeira íngreme e no meio da descida, à sua direita, custou a acreditar no que via: a Baía de Todos os Santos e a Ilha de Itaparica. A ladeira ficava na parte alta do continente e o mar, meio azul esverdeado, ficava bem abaixo. Era impossível tocá-lo, mas era possível sentir seu cheiro. Não saberia descrever, mesmo depois de tanto tempo, aquele turbilhão de sentimentos. Na verdade, seu corpo havia se transformado em sentimentos. Mirou aquela exuberância por alguns minutos e sentiu uma profunda paz e serenidade. Agora, diante da grandiosidade e mistérios do mar, não tinha mais tanto medo assim. Respirando profundamente, sentia-se outro homem e seguia em frente. Casas e prédios encobriam o mar, mas sabia que ele estava lá do outro lado. Bastava caminhar para encontrá-lo novamente – e, dessa vez, quem sabe, bem mais perto. Tocá-lo, portanto, passou a ser seu objetivo e não tinha mais volta este seu caminho. Mais alguns metros, quando não havia mais edifícios, encontrou-o novamente. Agora, além do mar, encontrou também com a areia da praia. Foi ao seu encontro de maneira solene. Aquele era um momento especial em sua vida e o barulho das ondas quebrando na praia parecia também lhe dizer isso. Estavam enamorados e felizes.
Não se lembra de quanto tempo ficaram ali namorando. Caminhava, sentava, tocava as águas nos lábios e sentiu seu gosto forte. Brincaram de várias brincadeiras; não queria mais sair daquele lugar mágico. Ao final da tarde, o sol se pôs sobre suas águas e um caminho brilhante se formou entre ele e o mar, até o sol. Impossível dizer com palavras o significado daquele encontro com o mar, sua areia e, ao final, sentir a sensação de caminhar sobre as águas, por um caminho luminoso, até o sol.
Retornou para casa pelo mesmo caminho e agora via tudo diferente. Ou, na verdade, tudo continuava como antes – ele não era mais a mesma pessoa. As pessoas não assombravam mais, os mendigos agora eram pessoas que pediam e não lhe atacariam, os carros trafegavam por seus caminhos, a vigilância cuidava do normal e assim era a vida. Sobretudo, boa parte de seus medos, aqueles mais irreais, haviam ficado na areia da praia. Continuava tendo medo, mas agora seus medos eram diferentes.
Pois bem, este não é o relato das aventuras de um adolescente na capital da Bahia, apesar de ser a história real do autor. Mas, um texto que tem como objetivo discutir, (de forma mais alegórica do que científica, sobre o medo e se nossos medos são, de fato, reais ou podem ser deixados, apreciando um belo pôr-do-sol, na areia da praia), apesar do sistema normativo vigente que muitos chamam de Direito, o guardião do cárcere em que se encontra aprisionado o amor dentro de cada um de nós.
Nesta saga alegórica, extensa e resumida em poucas linhas, pretende-se transitar a partir do ato maior de amor de Deus ao criar o homem e a mulher, estabelecendo a primeira norma que se tem notícia (não comerás daquela fruta!), para, em seguida, atravessar pela continuidade da saga humana até o estabelecimento de uma nova ordem, o decálogo, e, séculos adiante, relembrar a nova aliança com princípios retomados do amor paterno de Deus: somos todos irmãos e o princípio maior é amar o próximo com ao si mesmo!
Para além dos pecados e vergonhas impostos pela Igreja Católica, embora sob o argumento da igualdade de todos perante a Lei, na nova ordem não haverá lugar para o princípio maior do amor ao próximo e nem do amor livre e nem de amor algum. Em consequência, alegoricamente, podemos dizer que o medo da ira de Deus, no dia que julgará os vivos e os mortos, e o medo da Lei dos homens, aprisionaram o amor e o que passou a ser chamado de Direito (Estado/Juiz/Normas) tornou-se o carcereiro, o guardião das chaves do cárcere, dentro de nós mesmos, em que se encontra aprisionado o amor.
Por fim, um breve diálogo com a psicanálise, utilizando argumentos defendidos por Freud nas obras “O Futuro de Uma Ilusão” e “O Mal-Estar na Civilização” em busca de respostas para a frustração dos homens e seu permanente conflito com a civilização, que lhe tolhe os instintos e as pulsões, mas ao mesmo tempo lhe “garante” a segurança e a possibilidade de algum destino.
A ira de Deus!
Fazer do barro um homem e da costela desse homem uma mulher, no simbolismo católico, traduz um ato de extremo amor. Evidente que Deus sabia, onipresente e onipotente que é, o objetivo de sua ação: criar a espécie humana, à sua semelhança, para que povoasse seu belo jardim. Ao estabelecer seu primeiro comando normativo, no entanto, Deus também criou o medo e a proibição: não faças! Ou melhor: não comas! O preço da desobediência foi a ira de Deus e a revelação de seu lado impiedoso: estão despejados e vão levar apenas as roupas no corpo. Enfrentem o mundo perigoso, trabalhem, sintam dores, sofram as intempéries da natureza e enfrentem todos os animais selvagens, ordenou Deus. Agora, expulsos do paraíso, Adão e Eva estavam condenados à liberdade e às suas escolhas. Tudo lhes era permitido, mas deveriam também arcar com as consequências dessa permissividade.
Além de tudo isso, talvez o lado mais cruel da liberdade: a convivência com o outro e o estabelecimento de regras de convivência. Isto é permitido e isto não é permitido, podendo o infrator da norma ser punido por seu ato. Enfim, o homem agora estava condenado a ser livre, mas tinha um preço alto a pagar: viver sob regras e o medo da punição. Além desse medo, outros passaram a lhe perseguir: os mistérios da natureza, do inexplicável, dos animais selvagens e, por fim, de outros homens e da ira de Deus contra os pecadores.
Em forma de raios e trovões, Deus estabelecerá novas regras de conduta para os homens que, mesmo expulsos do paraíso, procriaram e povoaram o mundo – mesmo em um dilúvio, também obra de Deus, em que se salvaram poucas espécies, graças à providência de guardá-los, durante a intempérie, em uma grande arca. Na nova ordem Divina, cunhada a fogo, a humanidade se espelhará até a contemporaneidade no estabelecimento de regras de conduta, principalmente no que diz respeito ao direito à vida e a proteção ao patrimônio: não matarás e não furtarás!
A humanidade, então, têm um grande alento quando a ira de Deus sofre uma forte recaída e, reassumindo seu lado paterno e bondoso, envia seu filho aos homens para estabelecer uma nova aliança e restabelecer os laços de amor de pai perdidos por causa de uma serpente invocada. O filho de Deus, embora não tivesse revogado expressamente a ordem anterior, defenderá que o princípio maior agora é o amor ao próximo, base fundamental da alteridade. Esta grandeza e bondade de Deus de falar aos homens por intermédio de seu filho, humano como todos os homens, aliada a esta nova ética de amor ao próximo e a promessa da salvação, tripé da nova ordem religiosa e filosófica, terminará por suplantar a filosofia grega e dominar o pensamento ocidental através da força da Igreja Católica.
Para Freud (1996, p. 94), teria sido um sinal de hostilidade à própria civilização: a vitória do cristianismo sobre as religiões pagãs está intimamente relacionada à baixa estima dada à vida terrena pela doutrina cristã.
Assim, o mundo se tornou Cristão e, em tese, deveriam os homens viver em comunidade de iguais, independente de raça, cor, sexo e classe, amando o próximo como a si mesmo e no aguardo do dia em que fossem todos julgados por suas ações. Apenas em tese, no entanto, o mundo se tornou Cristão. A força dos Bispos e Papas, aliados ao poder da nobreza, por séculos e séculos, transformou o Reino da Alteridade Cristã no Grande Império Católico Ocidental, senhor de todas as mentes e corações.
Este mundo de castelos, catedrais e feudos não será eterno e a roda da história fará nascer dentro dele os germes de uma nova forma de organização social e política. Os homens, apesar dos medos e vergonhas, descobrirão que o trovão não é um esporro de Deus, mas resultado de um fenômeno natural. Da mesma forma, descobrirão que não são meras cobaias de Deus e que podem inventar uma nova forma, mais iluminada, de conviver com os outros e com a natureza. Tantas promessas e descobertas impelirão os homens à luta por esta nova ordem de liberdade, igualdade e fraternidade. Com uma nova classe social no comando, inaugura-se um novo tempo, um novo período histórico, o tempo da modernidade… Mas também de mais medos!
A era dos medos!
Vivemos a era dos medos. Diferente de quase todos nós, somente aquele guerrilheiro sonhador, morto a tiros pela ditadura, que tem escrito em sua lápide: “não tive tempo para ter medo”.
Ainda criança, o medo é do escuro, de ficar sozinho, de mulas-sem-cabeça, de sacis-pererês, de bicho-papão, da bruxa malvada, de almas-penadas, do olhar atravessado do pai, do futuro incerto e da morte. Adultos, substituímos os medos infantis por medos adultos, mas continuamos com medo. Permanece ainda com força o medo do futuro e da morte, mas agora outros medos acompanham esses medos antigos: medo de sair à noite, medo de dirigir, medo das novidades tecnológicas, medo dos outros, medo de ladrão, medo de ficar doente, medo da depressão, medo do câncer, medo das drogas, medo da polícia e dos bandidos, medo da solidão e medo da Justiça.
A proposta do Reino da Alteridade Cristã, como dito, foi atropelada pelo Império Católico e a burguesia assumiu, fazendo a história andar, o comando da nau. Neste sistema, a máquina de criação e alimentação de medos é poderosa e incansável. Além do aparato normativo, baseado em regras de conduta e proibições, o sistema de divulgação e propaganda incute, diariamente, nas mentes de todos sob seu domínio, as ideias que lhe interessam para manutenção do status vigente. Assim, pensamos que pensamos o que pensamos por virtude de nossa independência de pensar quando, na verdade, apenas reproduzimos um modelo de pensamento que o sistema há anos nos incute cotidianamente. Em suma, pensamos como pensamos porque, de fato, não pensamos por nós mesmos.
O Direito, por sua vez, entendido aqui como o conjunto normativo e seu estudo, que pouco ou quase nenhum sentido teria em um Reino da Alteridade, passou a ter um papel fundamental no desenvolvimento do sistema baseado na propriedade privada dos meios de produção e do lucro.
Interessa-nos, daqui por diante, por fim, entender como o Direito se transformou em um dos pilares mantenedores dessa cultura do medo, como se fora o síndico do mundo, e se, por outro lado, poderia não ter sido assim.
Chame o síndico!
O espectro desse síndico extremamente formal, racional, impiedoso, imparcial, neutro, avesso às emoções e ao amor, sob o fundamento da igualdade de todos perante a Lei, traduz-se em uma gama quase sem fim de proibições, definições de tipos penais e, consequentemente, em punições para os infratores da ordem estabelecida. Passamos a viver, portanto, inicialmente, sob o espectro da proibição, sob pena de castigo em caso de transgressão da ordem estabelecida pela nova classe dominante, e aos cuidados de um poderoso síndico. Em seguida, como se já não bastassem as proibições legais e a ameaça do castigo concreto, incutiu-nos a classe dominante outra gama quase sem fim de medos e temores. Medo do mundo, dos fenômenos naturais, da vida plena, dos outros, da felicidade, da liberdade e, sobretudo, do amor puro.
O advento do Estado Moderno, assim entendido como o modelo estabelecido com as revoluções burguesas, notadamente a Revolução Francesa de 1789, agora subordinado aos anseios e ambições da nova classe dominante, estabeleceu as condições para o crescimento e expansão da burguesia e seus negócios. Assim, era fundamental que fossem claras as regras relacionadas à produção da mercadoria, protegida a propriedade, que os contratos fossem respeitados para fazerem circular a mercadoria produzida e, sobretudo, que os vínculos familiares fossem sólidos e garantissem a sucessão da riqueza acumulada. Estavam oferecidos, portanto, os fundamentos para o estabelecimento de um conjunto normativo que protegesse a propriedade, os contratos e a família. O resultado, como sabemos, será a codificação dessas normas no Código Civil Francês, de 1804, o Códe Napoleon, que irá influenciar, definitivamente, a legislação de outros Estados da Europa e América.
Ao lado das regras mínimas para as titularidades, o trânsito jurídico e para o projeto parental, cuidou também o Estado de estabelecer o aparato normativo-punitivo para os transgressores da nova ordem, ou seja, para aqueles que violassem a propriedade, agora sagrada e inviolável; para os que violassem os contratos, agora sob a proteção do “pacta sunt servanda” e, finalmente, para os que ousassem transgredir a moral e os bons costumes de outro ente sagrado: a família. Na esteira desse aparato normativo, portanto, mais normas: código penal, códigos de processo e outros códigos.
Nesta nova era, a humanidade estava livre do jugo da nobreza e do clero. Mas, para o bem da convivência pacífica entre os homens e da harmonia social, necessário se fazia o estabelecimento de novas regras de conduta para evitar o caos social e a barbárie. Assim, tornou-se necessário o estabelecimento de regras e, ao lado delas, o aparato estatal para garantir sua vigência e aplicação. Portanto, o Estado passou a ser incumbido de garantir, através de seus agentes, as condições fundamentais para a expansão burguesa, ou seja, garantir a propriedade, os contratos e a família. O Poder Judiciário, portanto, como Poder do Estado, assume papel fundamental neste processo histórico.
Em consequência dessa nova organização do Estado e do Poder, baseado em um aparato normativo e condições objetivas da nova ordem política e social, a ciência se encarregou de estabelecer os fundamentos teóricos que justificassem esta nova forma de organizar e manter o Estado. A ciência jurídica, arte dos juristas, denomina o estudo desse aparato e de suas normas como sendo o Direito e o convida para o papel de síndico do edifício que acabaram de construir. Está tudo sob controle agora: a sociedade é harmônica, pois, baseada na igualdade de todos perante a lei, e havendo imprevistos e ruídos nesta harmonia, o síndico deverá resolver o impasse com base no aparato normativo ao seu dispor e interpretação. Em outras palavras, alegoricamente, para os vizinhos de mau comportamento e intrometidos, descumpridores do novo contrato social, chame o síndico para contê-los, ou seja, chama o Estado/Juiz/Normas: o Direito!
Evidente que a história do Direito não aconteceu de forma desgarrada e incólume do processo histórico. Na verdade, cada cultura dominante produz seu próprio sistema normativo e, consequentemente, seu sistema de Direito. Da mesma forma, vencida ou superada uma cultura, a emergente produzirá seu ordenamento e sua forma de aplicá-lo para desenvolvimento do próprio sistema de regras e para manutenção, evidentemente, da ordem então dominante. Então, para chegarmos ao esconderijo da chave que trancafiou o amor, lembremos rapidamente como se deu este processo alhures e aqui.
Sempre elas, as Leis!
Não comerás, não matarás, não furtarás, decálogo, leis egípcias, Código de Hamurabi, Leis Draconianas, Lei das 12 tábuas, Leis Naturais, Corpus Iuris Civilis, Ordenações, Common Law, Códigos Medievais, Manual da Inquisição, Martelo das Bruxas, Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, Código de Napoleão, Tratados Internacionais, Códigos e mais códigos, Estatutos e mais estatutos, Constituições, etc. Desde sempre, portanto, o homem viveu sob o comando de regras impostas sob a forma de leis. Também, do lado oriental do planeta, as regras mínimas de relacionamento nas tribos da África e da América, se não escritas, existiam e eram obedecidas. Sempre elas, portanto, as Leis.
No caso específico do Brasil, enquanto os índios viviam sob regras próprias, alguns admitindo o canibalismo e outras práticas absurdas aos olhos do colonizador, o reino português vivia sob a orientação das Ordenações Afonsinas (até 1514), Manuelinas (até 1603) e Filipinas (até 1822). Em consequência, também a colônia vivia sob a orientação desses ordenamentos. Com a independência, o Brasil passou a elaborar seu próprio ordenamento, primeiro como Império (Constituição de 1824) e depois como República (Constituição de 1891). Em seguida, o Código Comercial, Código Civil, Penal, e este emaranhado de Leis e outras regras em que nos encontramos atualmente enredados neste país dos bacharéis. Com relação ao ensino jurídico, em 11 de agosto de 1827, a Lei “Crêa dous Cursos de sciencias Juridicas e Sociaes, um na cidade de S. Paulo e outro na de Olinda.” Sendo assim, passamos a ter uma Constituição em 1824 e, logo em seguida, dois cursos de Direito. Esta mesma lei já dispunha sobre a grade curricular para ser cumprida em cinco anos e os pretendentes ao curso deveriam “apresentar as certidões de idade, porque mostrem ter a de quinze annos completos, e de approvação da Lingua Franceza, Grammatica Latina, Rhetorica, Philosophia Racional e Moral, e Geometria.” Destaque-se, ainda, que no primeiro ano os estudantes deveriam se debruçar sobre “Direito natural, publico, Analyse de Constituição do Império, Direito das gentes, e diplomacia”.
Evidente que não poderia se esperar que um curso de Direito criado em 1827 tivesse, em sua grade curricular, disciplinas referentes aos Direitos Humanos, Direito Agrário ou Hermenêutica; bem como fosse destinado a filhos de camponeses, de escravos ou de índios. De outro lado, saber Francês, Latim, Retórica, Filosofia e Geometria já indicava a quem se destinava o curso de Direito e quem seriam os futuros bacharéis deste país, ou seja, advogados, juízes, promotores, etc. Neste caminhar, passamos a ter um Código Civil em 1917, outros Códigos e Leis se sucederam e também Constituições.
Depois da Guerra, enquanto a Europa reorganizava seus Estados e, consequentemente, seus ordenamentos jurídicos fundados em Constituições Nacionais (Itália e Alemanha, por exemplo), também o Brasil experimentava uma Constituição promulgada em 1946. Poucos anos depois, sem ainda estabelecida a cultura constitucional de respeito à democracia e ao Estado Democrático de Direito, os militares assaltavam o poder em 1964 e ditavam as regras, até quando se operou, nesta terra, uma transição pacífica, resultando na Constituição de 1988, ora vigente. Como consequência, a legislação infraconstitucional necessitou de ajustes e reformas para ser recepcionada pela Constituição Federal.
Podemos dizer, portanto, depois desse breve relato, que a grande novidade no campo legislativo, desde a Guerra, é o estabelecimento de Estados Nacionais moldados por Constituições. Diz-se, portanto, que estaríamos vivendo sob o signo de um novo constitucionalismo ou de um constitucionalismo contemporâneo. Em consequência, o Direito estaria sofrendo um abalo, necessitando de novos estudos e soluções, acerca da teoria da fonte (qual o lugar da Constituição?), da teoria da norma (qual o lugar dos princípios?), da hermenêutica jurídica (constitucional) e, por fim, a necessidade de fundamentação de uma teoria da decisão (o argumento constitucional?).
Este relato, no entanto, traduz-se em mera historiografia do processo legislativo brasileiro e da fundação dos primeiros cursos de Ciências Jurídicas e uma provocação final para lembrar que, de fato, o Direito não se resume a esta historiografia e, muito menos, ao conjunto de normas impostas em determinado período histórico pela classe dominante de então.
Outros olhares…
Para Antônio Carlos Wolkmer (2007, p. 5), “pode se conceituar a História do Direito como a parte da História geral que examina o Direito como fenômeno sócio-cultural, inserido num contexto fático, produzido dialeticamente pela interação humana através dos tempos, e materializado evolutivamente por fontes históricas, documentos jurídicos, agentes operantes e instituições legais reguladoras”.
Neste sentido, entendendo cada tempo com o seu Direito, podemos pensar que também cada povo e cada época construíram o seu ordenamento jurídico com intenções claras e objetivas, visto que a história não é apenas uma sucessão de datas e eventos, mas um processo dialético de superações e de contradições. Quando a teocracia predominou, as normas eram divinas e visavam manter a ordem religiosa predominante. Quando os interesses da burguesia predominaram, as normas foram elaboradas por homens e visavam manter e ampliar o poder da burguesia. Quando os interesses do capitalismo, em suas mais diversas formas, predominam no atual estágio da história da humanidade, as normas passam a ter caráter globalizantes e direcionam seus tentáculos para todos os lados que interessam na defesa do neoliberalismo, da globalização e na perpetuação do sentido de “via única”, insubstituível e vencedora do embate histórico.
No dizer de Antônio M. Espanha (apud Wolkmer, 2007, p. 18), a historiografia jurídica da modernidade tem objetivos muito claros. Primeiro, relativizar, e, consequentemente, desvalorizar a ordem social e jurídica pré-burguesa, apresentando-a como fundada na irracionalidade, no preconceito e na injustiça; segundo, realizar a apologia da luta da burguesia contra essa ordem ilegítima (Ancien Régime) e a favor da construção de um Direito e de uma sociedade “naturais” e harmônicos, isto é, libertos da arbitrariedade e historicidade anteriores.
Ao lado de outros “eventos epistemológicos” (teoria crítica, neomarxismo, psicanálise, linguística, pensamento libertário etc), o Direito também sofreu críticas nas últimas décadas e evoluiu a ideia de um Direito Alternativo a serviço da libertação e emancipação dos povos. Para tanto, uma hermenêutica crítica, teria, no dizer de Amilton Bueno de Carvalho (1998), os seguintes critérios: a) o Direito é um instrumento estratégico de luta, de resistência e de emancipação a favor dos menos favorecidos e injustiçados; b) rejeitam-se a neutralidade e a apoliticidade dos agentes e das instâncias de jurisdição; c) busca-se construir uma sociedade democrática solidária, pluralista e participativa; d) opção metodológica por um referencial histórico-social que responda às novas necessidades e reconheça as demandas por transformação da realidade; e) privilegia-se a legitimidade das maiorias excluídas e a justiça social.
Este movimento chamado Direito Alternativo teve boa repercussão no Brasil, influenciando significativa geração de estudantes de Direito, professores, magistrados e juristas. Várias obras foram publicadas sobre o tema, mas o Direito Alternativo ressente-se ainda de uma fundamentação teórica e epistemológica consistentes, a ponto de se contrapor com o dogmatismo e positivismo dominantes. Noutro sentido, a crítica ao Direito Alternativo, que poderia ser a crítica da crítica crítica, traduz-se no sentido que esse “alternativismo” não implica em uma “alternativa” ao Direito, mas apenas mais uma adjetivação ao Direito, que continuaria sendo o Direito. Assim, no dizer de Luis Alberto Warat (2010, p. 59), o Direito e o jurídico continuam sendo pensados sob a ótica normativista, pois diferente disso seria como pensar o direito fora do prato que o contém, ou seja, colocar-se, como jurista, fora do prato do Direito para analisá-lo. Eis os desafios e os dilemas em que chegamos: o Direito será sempre sinônimo de norma? Mesmo sendo norma poderá ser libertador? O Direito poderá ser visto e estudado fora do prato que o contém? O Direito poderá ser alternativo a ele mesmo ou será possível cogitar uma alternativa ao Direito?
O Direito, o amor e os males do mundo
Antes de buscar respostas para essas indagações, precisamos entender qualquer coisa sobre os males atuais que afligem a humanidade, se o Direito tem algum papel na busca de solução para esses problemas e o que pode fazer o amor por todos nós. Em edição especial que circulou no mês de julho de 2012, a revista Caros Amigos convidou vários cientistas para escreverem sobre “os males do mundo atual”. Consta do Editorial: “É difícil afirmar que os males da Idade Média tenham sido mais fortes do que os atuais. Ou que o começo do capitalismo, nos séculos 18 e 19, tenha sido menos penoso para o trabalhador do que hoje. Sem entrar no caminho da comparação e da escala de valores, o que parece relevante para todos, cada qual no seu tempo, é a possibilidade de poder identificar, conhecer, analisar, debater e estabelecer a devida consciência sobre o que mais pesa sobre o ser humano e a sociedade – em cada momento histórico da humanidade”. As reportagens, em resumo, versam sobre os seguintes males do mundo atual: a depressão como a doença que mais cresce no mundo; as doenças tecnológicas causadas por produtos eletrônicos e químicos; a exploração do trabalho com desumanização sem limites; a ideologia do consumismo que incentiva a compra de bens, desejos e experiências; o envenenamento da comida por agrotóxicos; a busca de um padrão estético moldado pela ditadura do mercado; a indústria farmacêutica fomentando o aumento do consumo de remédios; o poder do dinheiro promovendo a barbárie cultural; recursos tecnológicos produzindo a multiplicação das religiões e pulverizando a fé; doenças tecnológicas; o massacre da comunicação e, por conta de tudo isso, a passividade dada pelo consumismo, individualismo e imediatismo.
Enfim, o mundo atual vive assoberbado de males dos mais diversos, os quais têm como causa desde o próprio modelo de sociedade e das relações impostas pelo capitalismo, até o que pode ser considerado como avanço e progresso desse modelo, como as doenças causadas pelas tecnologias.
Ao lado de todos esses males, sem dúvidas, os medos que os acompanham: medo da depressão e outras doenças, medos dos crimes reais e virtuais, medo de perder o emprego, medo da polícia, medo de ser processado por outro, entre outros.
Diante disso, temos, então, as duas indagações iniciais: que papel tem o Direito diante dos males do mundo e dos medos que nos afligem? O que pode fazer o amor por todos nós? Por fim, temos ainda a hipótese inicial a ser questionada – o Direito tornou-se o carcereiro da prisão em que o medo aprisionou o amor?
Pois bem, o Direito entendido como norma e, portanto, fundado no normativismo, será sempre “o” Direito. A questão a ser discutida, a meu ver, no entanto, é se este Direito fundado na norma pode ser libertador e emancipador, diferente daquele que se tornou carcereiro do amor. Assim, por exemplo, mesmo um Direito fundado na norma constitucional, que defende a construção de uma sociedade livre, justa e solidária e um Estado fundado na cidadania e dignidade da pessoa humana, será também “o” Direito fundado na norma, mesmo que agora seja a norma constitucional. Em consequência, “o” Direito fundado na norma, mesmo que seja a norma constitucional, como parte de um fenômeno cultural e dialético de determinada ordem histórico-social, pode ser emancipador e libertador?
Mesmo na hipótese negativa (o Direito não liberta!), é imperativo indagar e buscar a resposta para a possibilidade de “o” Direito, mesmo não sendo o promotor da liberdade, devolver as chaves do cárcere em que aprisionou o amor ou, mais ainda, colocá-lo em liberdade. Na verdade, enquanto o Direito se fundar na norma destinada à manutenção do status quo vigente e na proteção da propriedade, dos contratos e da família, ou seja, da moral e bons costumes assim entendidos pela classe dominante, seu papel será sempre o mesmo. Sendo assim, haveria, então, qualquer possibilidade de o Direito não se fundar na norma? Segundo Warat (2010, p. 87), “obrigo-me a falar de uma concepção jurídica da alteridade. Surge desta identidade a possibilidade de outra concepção do Direito sensível às experiências de emancipação. A alteridade como base de uma concepção emancipatória do Direito”.
Freud explica…
Na cultura totêmica, segundo investigações de Freud, (1996), a cultura se baseia nas restrições que os filhos tiveram de impor-se mutuamente, a fim de conservar um novo estado de coisas; ou seja, a vontade arbitrária do chefe, o pai, era irrestrita sobre sua fêmea, que assim se submetia para não se separar dos rebentos indefesos. Dessa forma, a vida comunitária teve um fundamento duplo: a necessidade de trabalhar e o amor do homem por seu objeto sexual – a mulher – e o amor desta por seus filhos. Estes, de sua vez, perceberam que esta combinação poderia ser mais forte do que suas ações individuais.
Assim, segundo Freud, os preceitos do tabu constituíram o primeiro “direito” ou “lei”. Em consequência, o primeiro resultado da civilização foi que, mesmo um número significativo de pessoas poderia agora viver reunido numa comunidade – ou seja, a civilização humana. Nesta nova etapa, os homens são capazes de controlar as forças da natureza e extrair dela o necessário para a satisfação de suas necessidades, bem como estariam assimilados todos os regulamentos necessários para possibilitar as relações dos homens uns com os outros. Outros problemas, no entanto, advirão desta nova forma de convivência humana: as relações entre os homens são influenciadas pela quantidade de satisfação instintual que a riqueza humana torna possível; um homem pode vir a se transformar em objeto de riqueza para outro homem – exploração do trabalho ou objeto sexual – e, por fim, os indivíduos se tornam inimigos virtuais da civilização, embora reconheçam sua necessidade para a convivência universal.
Nesta lógica, segundo Freud, fica-se com a impressão de que a civilização é uma imposição de uma minoria que compreendeu como obter a posse dos meios de poder e coerção. Por consequência, a civilização tem de ser defendida contra os próprios impulsos hostis dos homens, visando a possibilidade da vida comunitária e a produção, manutenção e distribuição da riqueza. Isto se faz através das instituições, regulamentos e ordens.
De onde viria, no entanto, a insatisfação e a hostilidade do indivíduo com a civilização? Haveria possibilidade, de outro lado, do estabelecimento de relações humanas que removessem as fontes de insatisfação do indivíduo para com a civilização? É possível imaginar uma civilização que provesse todos os desejos através da distribuição da riqueza e, assim, abolir os sentidos de proibição e privação, resultando, por fim, na abolição das medidas de força e coerção?
Segundo Freud, toda civilização tem de se erigir sobre a coerção e renúncia ao instinto de seus membros. O homem primitivo poderia se achar em situação melhor sem conhecer restrições ao instinto, mas suas perspectivas de desfrutar dessa felicidade eram muito mais tênues. Sendo assim, o homem civilizado trocou a possibilidade de felicidade pela possibilidade da segurança, desistindo de seus instintos. Restariam presentes em todos os homens, no entanto, as tendências destrutivas e, portanto, antissociais e anti-culturais. A vida, portanto, torna-se difícil de ser suportada, pois a civilização de que participa o indivíduo impõe-lhe uma quantidade enorme de proibições e privações, além do sofrimento que os outros indivíduos lhe causam. Por fim, a civilização, contraditoriamente, é nossa salvação e nossa desgraça, pois, apesar das conquistas tecnológicas e subjugação das forças da natureza, a civilização não aumentou a quantidade de satisfação prazerosa que poderia esperar da vida e também não nos tornou mais felizes.
E poderia ser diferente? Ainda segundo Freud, uma civilização que removesse todas as formas de insatisfação e abolisse todas as formas de coerção e repressão dos instintos representaria uma verdadeira idade do ouro, mas que era muito discutível se tal estado de coisas pudesse se tornar realidade. Primeiro, todos os homens deveriam renunciar a seus instintos, e a distribuição da riqueza deveria proporcionar a felicidade que proporcionasse a vida em comunidade. Pessimista, Freud observava ainda que nenhuma cultura produzia massas humanas com estas qualidades, e seria alarmante pensar na imensa quantidade de coerção que, inevitavelmente, seria exigida antes que tais intenções fossem postas em prática. De outro lado, a suspensão de todas as proibições e a satisfação de todos os instintos (tomar qualquer mulher como sua, matar os rivais e tomar qualquer pertence de outro) nos conduziria a um impasse: todos os outros teriam os mesmos desejos que eu e não me tratariam com mais consideração do que eu os trato. Assim, somente quem conseguisse se apoderar de todos os meios de poder, ditador tirano, poderia se tornar irrestritamente feliz com a remoção de todas as restrições da civilização.
Do exposto, chega-se à conclusão de que, necessariamente, os relacionamentos mútuos dos homens e seus relacionamentos sociais devem ser regulados para o bem da civilização. Segundo Freud, a vida humana em comum só se torna possível quando se reúne uma maioria mais forte do que qualquer indivíduo isolado. Maioria que permanece unida contra todos os indivíduos isolados. Isto é, o poder do “direito” sobre a “força bruta”. Este, portanto, é o passo decisivo para a civilização. Sendo assim, a primeira exigência da civilização é a da “justiça”, ou seja, a garantia de que a lei será obedecida por todos e não será violada em favor de um indivíduo. O resultado final desse processo legal seria o estabelecimento de um estatuto legal para o qual todos contribuiriam com um sacrifício de seus instintos para que ninguém ficasse exposto à força bruta. O desenvolvimento da justiça, portanto, imporia restrições à liberdade individual e a civilização exige que ninguém fuja às essas restrições. A liberdade, portanto, não constitui um dom da civilização. Ao contrário, ela foi muito maior antes da exigência de qualquer civilização.
Em conclusão, para Freud, o processo civilizatório foi construído sobre a renúncia ao instinto, pressupondo exatamente a não-satisfação desses instintos pela instituição de regulamentos que autoriza o uso da repressão contra os indivíduos que violam as regras impostas. Este, portanto, seria o motivo da frustração e revolta que domina grande parte dos relacionamentos sociais estre os seres humanos, bem como o objeto que dá sentido à busca de toda civilização. Por fim, nas palavras de Freud (1996, p. 104), “não é fácil entender como pode ser possível privar de satisfação um instinto. Não se faz isso impunemente. Se a perda não for economicamente compensada, pode-se ficar certo de que sérios distúrbios decorrerão disso”.
Conclusão
Se nossos medos não ficaram todos nas areias da praia do Porto da Barra, em Salvador, como fazer para conviver com eles – cada dia mais presentes –, se necessitamos de uma cultura da alteridade e do amor ao próximo, mas a Igreja Católica afastou de nós o cálice do mandamento maior de amar o próximo como a si mesmo e o Direito, no estado moderno, funda-se unicamente no normativismo, também divorciado da alteridade, e objetiva apenas manter o status quo vigente? Como, portanto, viver plena e abundantemente com o amor aprisionado dentro de nós?
Óbvio que o amor, ao próximo e ao planeta, é fundamental para a perpetuação da espécie humana sobre a “nave” terra. Sem o amor aos pobres e desvalidos, sem o amor aos filhos, sem o amor aos pais, aos companheiros e companheiras, sem o amor à pessoa mais amada e mais bela do mundo, como já disse Paulo aos Coríntios, nada seríamos! De outro lado, a história nos mostra que sempre houve e haverá regras que nos indiquem os limites da convivência com os semelhantes e com o planeta. Assim, haverá de existir as regras, mas não haverá a felicidade e realização do projeto humano sobre o planeta sem a igualdade material e sem a convivência baseada na alteridade.
A questão fatídica para a espécie humana, segundo Freud, é saber até que ponto seu desenvolvimento cultural conseguirá dominar a perturbação de sua vida comunal causada pelo instinto humano de agressão e autodestruição. Apesar disso, no entanto, mesmo que o amor pelo outro carregue em si a dor pela possível perda, misturando necessariamente amor e dor, uma pequena minoria de pessoas acha-se capacitada para encontrar a felicidade no amor. São Francisco de Assis foi quem mais longe se utilizou do amor em benefício de um sentimento interno de felicidade, pois volta seu amor não para objetos isolados, mas para todos os homens. Esta disposição para o amor universal pela humanidade e pelo mundo, para Freud, representa o ponto mais alto que o homem pode alcançar.
Assim, a tarefa maior que nos impõe a história, enquanto artesãos do Direito, sem dúvidas, é pensar em uma alternativa, mesmo reconhecendo a necessidade das normas, a isto que hoje denominamos Direito e que nos foi apresentado, ao longo de séculos, como a possibilidade única de convivência e de sobrevivência. Sua prática, no entanto, tem demonstrado que de nada adianta lhe oferecer adjetivos ou aplicá-lo de formas não convencionais. O resultado será sempre o mesmo: estaremos sempre fortalecendo o normativismo e mantendo tudo como está, como se o mundo e as relações entre as pessoas se resumissem ao que é e fora do prato não existisse mais nada. Da mesma forma que um copo vazio está cheio de ar, fora do prato em que o Direito pretende resumir o mundo, existem vários outros mundos a serem descobertos e explorados. Esta, por fim, é a tarefa de tantos quantos sofrem do mal do amor pelo outro.
Terminando com Freud,
“agora, penso eu, o significado da evolução da civilização não mais nos é obscuro. Ele deve representar a luta entre Eros e a Morte, entre o instinto de vida e o instinto de destruição, tal como ela se elabora na espécie humana. Nessa luta consiste essencialmente toda a vida, e, portanto, a evolução da civilização pode ser simplesmente descrita com a luta da espécie humana pela vida”.
Nesta luta pela vida, finalmente, a batalha principal é libertar o homem de seus medos e dar vazão ao amor, aprisionado pela civilização, a pretexto da garantia da segurança e da condição de sociabilidade, e vigiado pelo Direito, como se fora seu carcereiro.