terça-feira, 5 de maio de 2020

O FENÔMENO DA MORTE



Como é que é morrer?

Essa é uma questão sobre a qual a humanidade se tem debruçado desde que existem seres humanos. Durante os últimos anos tive oportunidade de levantar essa questão diante de um número considerável de audiencias. Esses grupos incluíam desde classes de psicologia, filosofía e sociologia, passando por organizações religiosas, clubes cívicos e audiências de televisão, até sociedades profissionais de medicina. Com base nessa experiência, posso afirmar com segurança que este tópico excita os mais poderosos sentimentos em gente com os mais diversos tipos emocionais e modos de vida.

Entretanto, a despeito de todo esse interesse, ainda permanece verdade afirmar que é muito difícil para a maioria de nós falar sobre a morte. Há pelo menos duas razões para isso. Uma delas é antes de tudo psicológica e cultural: o assunto morte é tabu. Sentimos, talvez apenas subconscientemente, que estar em contato com a morte, de qualquer jeito, ainda que indiretamente, de algum modo nos coloca em confronto com a perspectiva de nossa própria morte, aproxima-nos de nossa morte e a torna mais real e pensável. Por exemplo, a maioria dos estudantes de medicina, incluindo eu próprio, descobre que mesmo o encontro com a morte que ocorre na primeira visita aos laboratórios de anatomia no início do curso de medicina pode provocar fortes sentimentos de mal-estar. No meu próprio caso, a razão dessa resposta parece agora bastante óbvia. Ocorreu-me retrospectivamente que não era inteiramente preocupação pela pessoa cujos restos mortais eu via ali, embora esse sentimento certamente estivesse presente. O que eu estava vendo naquela mesa era um símbolo de minha própria mortalidade. De algum modo, ainda que apenas pré-conscientemente, este pensamento deve ter estado presente em minha mente: "Isto acontecerá comigo também".

Da mesma forma, falar sobre a morte pode parecer ao nível psicológico um outro modo de aproximar-se dela indiretamente.

Muita gente sem dúvida tem a sensação de que falar sobre a morte já é, com efeito, conjurá-la, trazê-la mais perto, de modo que seja preciso encarar a inevitabilidade do nosso próprio fim. Assim, para poupar-nos esse trauma psicológico, decidimos evitar o assunto tanto quanto possível.

A segunda razão pela qual é difícil discutir a morte é mais complicada, e tem suas raízes na própria natureza da linguagem.

Na sua maioria, as palavras da linguagem humana aludem a coisas das quais temos experiência através dos nossos próprios sentidos físicos. A morte, entretanto, é algo que jaz além da experiência consciente da maioria de nós porque a maioria de nós ainda não passou por ela.

Se é que vamos falar acerca da morte, então é preciso evitar tanto os tabus sociais como os dilemas lingüísticos profundamente estabelecidos que derivam de nossa própria inexperiência. O que freqüentemente acabamos por fazer é falar por analogias eufemísticas. Comparamos a morte ou morrer com coisas mais agradáveis da nossa experiência, coisas com as quais temos mais familiaridade.

Talvez a mais comum analogia desse tipo seja a comparação entre a morte e o sono. Morrer, dizemos a nós mesmos, é como dormir.

Essa figura de retórica ocorre com muita freqüência no pensamento e na lin--guagem cotidianos, bem como na literatura de muitas culturas e de muitas épocas. Era aparentemente muito comum mesmo no tempo dos antigos gregos. Na Ilíada, por exemplo, Homero chama o sono de "irmão da morte", e Platão, na sua obra Apologia, põe as seguintes palavras na boca de seu mestre, Sócrates, que acaba de ser condenado à morte por um júri ateniense:

"[Agora, se a morte é só um sono sem sonhos,] deve ser um benefício maravilhoso. Suponho que, se se diz a alguém que escolha a noite na qual dormiu tão profundamente a ponto de nem sequer ter sonhos e depois que a compare com as outras noites e dias de sua vida, e então diga, dando a devida consideração, quantos dias e noites melhores e mais felizes do que essa passou em todo o curso de sua vida — bem, penso que. . . [qualquer] um acharia fácil contar esses dias e noites em comparação com o resto. Se a morte é assim, então digo que é um benefício, porque a totalidade do tempo, se encarada dessa maneira, pode ser vista como não mais do que uma só noite".

Nossa própria linguagem contemporânea está imbuída dessa mesma analogia. Considere a frase "pôr para dormir". Se você leva seu cachorro ao veterinário com a instrução de fazê-lo dormir, normalmente quer dizer algo muito diferente do que diria ao levar sua mulher ou seu marido a um anestesista com a mesma instrução.

Outros preferem uma analogia diferente, mas relacionada. Morrer, dizem, é como esquecer.

Quando a gente morre, esquece todas as nossas mágoas; todas as nossas memórias dolorosas e perturbadoras são obliteradas.

Velhas e difundidas como sejam, contudo, ambas as analogias, a do

"dormir" e a do "esquecer", são no fim das contas inadequadas no que diz respeito ao consolo que nos proporcionam. São duas maneiras diferentes de fazer a mesma afirmação. Ainda que nos digam isso de uma forma algo mais aceitável, ambas dizem, com efeito, que a morte é simplesmente a aniquilação da experiência consciente, para sempre. Se é assim, então a morte não tem na verdade nenhum dos aspectos desejáveis do dormir ou do esquecer.

Dormir é uma experiência positiva, desejável na vida porque se desperta depois. Uma repousante noite de sono faz com que as horas seguintes em que estamos despertos se tornem mais agradáveis e produtivas. Se não fosse seguido pelo despertar, nenhum dos efeitos benéficos do sono seria possível. Da mesma forma, a aniquilação de toda experiência consciente implica não só a obliteração das memórias desagradáveis, mas também a das agradáveis. Assim, uma vez analisadas, nenhuma das analogias chega a nos dar algum consolo ou esperança ao encarar a morte.

Há, no entanto, um outro ponto de vista que desaprova a idéia de que a morte é uma aniquilação da consciência. De acordo com essa outra e talvez mais antiga tradição, algum aspecto do ser humano sobrevive mesmo depois que o corpo físico cesse de funcionar e seja finalmente destruído. A esse aspecto persistente muitos nomes têm sido dados, entre os quais "psique", "alma", "mente", "espírito", "eu",

"ser" e "consciência". Não importando o nome por que seja chamado, a noção de que se passa para outro reino da existência depois da morte física é das mais veneráveis entre as crenças humanas. Há um cemitério na Turquia que foi usado pelos homens de Neandertal há aproximadamente cem mil anos. Lá, impressões fossilizadas permitiram aos arqueólogos descobrir que os homens primitivos enterravam seus mortos em ataúdes de flores, indicando talvez que viam a morte como a ocasião de uma celebração — como o trânsito dos mortos deste mundo para outro. Com efeito, túmulos encontrados em escavações muito primitivas em todas as partes da Terra nos dão testemunhos da crença na sobrevivência humana depois da morte.

Em resumo, deparamo-nos com duas respostas contrastantes à nossa pergunta original acerca da natureza da morte, ambas de derivação muito antiga, e, no entanto, sustentadas ainda hoje.

Alguns dizem que a morte é a aniquilação da consciência; outros, com igual confiança, que a morte é a passagem da alma ou da mente para uma outra dimensão da realidade. No que se segue não pretendo contrariar nenhuma dessas duas respostas. Quero simplesmente fornecer o relato de uma pesquisa que empreendi pessoalmente.

Durante os últimos anos encontrei um grande número de pessoas que estiveram envolvidas no que chamarei "experiências de quase morte". Encontrei essas pessoas de várias maneiras. A princípio, por coincidência. Em 1965, quando era estudante de filosofia na Universidade da Virgínia, encontrei um homem que era professor de psiquiatria clínica na faculdade de medicina. Desde o começo fiquei impressionado com seu calor, bondade e bom humor. Foi uma grande surpresa quando mais tarde vim a saber a respeito dele um fato muito interessante, o de que tinha estado "morto" — não uma, mas duas vezes, com o intervalo de dez minutos — e de que tinha feito o relato mais fantástico sobre o que aconteceu com ele enquanto esteve "morto". Mais tarde escutei ele próprio contar sua história a um pequeno grupo de estudantes interessados. Na ocasião fiquei muito impressionado, mas como tinha pouca base para avaliar tais experiências, apenas "arquivei" a narrativa, tanto na minha mente como sob a forma de uma gravação em fita magnética que fiz na ocasião.

Alguns anos mais tarde, depois de ter recebido meu doutoramento em filosofia, eu estava ensinando em uma universidade na parte leste do Estado da Carolina do Norte. Em um dos cursos pedi aos alunos que lessem o diálogo Fédon de Platão, trabalho em que a imortalidade é uma das questões discutidas. Nas minhas aulas tinha estado destacando as outras doutrinas que Platão ali apresenta, e não as enfocara sobre a discussão da vida depois da morte. Um dia, depois das aulas, um aluno pediu para falar comigo. Perguntou se podíamos discutir o assunto da imortalidade. Tinha algum interesse no assunto porque a avó dele tinha "morrido" durante uma operação cirúrgica e tinha narrado uma experiência bastante surpreendente. Pedi-lhe que contasse para mim, e, para minha grande surpresa, relatou quase que a mesma série de eventos que eu tinha escutado o professor de psiquiatria descrever alguns anos antes.

A essa altura minha procura de casos tornou-se algo mais ativa e comecei a incluir leituras sobre o tema da sobrevivência humana depois da morte biológica nos meus cursos de filosofia. Contudo, fui cuidadoso em não mencionar as duas experiências de morte em meus cursos. Adotei, na verdade, a atitude de esperar para ver. "Se esses relatos forem bastante comuns", refleti,

"irei provavelmente ouvir mais, se tão-somente levantar o tópico geral da sobrevivência em discussões filosóficas, expressar uma atitude simpática em relação a essa questão e esperar." Para minha surpresa, encontrei em quase todas as classes, de mais ou menos trinta alunos, pelo menos um estudante que me procurava depois da aula para relatar uma experiência pessoal de "quase morte".

O que me surpreendeu desde o começo do meu interesse foi a grande semelhança dos relatos, a despeito do fato de que vinham de pessoas com as mais diversas religiões e diferentes circunstâncias sociais e educacionais. Na ocasião em que ingressei na faculdade de medicina, em 1972, já tinha coletado um número considerável dessas experiências e comecei a mencionar o estudo informal que estava fazendo a algumas das minhas relações na faculdade. Em dado momento um amigo me convenceu a fazer uma palestra na Sociedade de Medicina, e outras conferências se seguiram. Mais uma vez descobri que depois de cada palestra alguém vinha me contar uma experiência pessoal.

À medida que fiquei mais conhecido por causa desse interesse, médicos começaram a me enviar pessoas que eles tinham ressuscitado e que relatavam experiências pouco usuais. Outros ainda me escreveram dando informações quando apareceram nos jornais artigos sobre os meus estudos.

No momento presente, conheço cerca de cento e cinqüenta casos desse fenômeno. As experiências que estudei recaem sobre três categorias distintas:

1) Experiências de pessoas que foram ressuscitadas depois de terem sido julgadas, consideradas ou declaradas mortas pelos seus médicos.

2) Experiências de pessoas que, no decorrer de acidentes ou doenças ou ferimentos graves, estiveram muito próximas da morte física.

3) Experiências de pessoas que, enquanto morriam, contaram-nas a outras pessoas que estavam presentes. Mais tarde, essas outras pessoas relataram para mim o conteúdo da experiência de morte.

Da vasta quantidade de material que podia ser derivado desses cento e cinqüenta casos, obviamente ocorreu uma seleção. Às vezes proposital. Por exemplo, embora eu tenha achado que os relatos do terceiro tipo estejam de acordo e complementem bem as experiências dos outros dois tipos, abandonei a maioria deles considerando duas razões. Primeiro, porque ajudava a reduzir o número de casos estudados a um nível que permitisse melhor tratamento dos dados, e, segundo, porque issó me permitia ficar tanto quanto possível com os relatos de primeira mão. Assim, entrevistei com bastantes pormenores cerca de cinqüenta pessoas cujas experiências sou capaz de relatar. Dessas, os casos do primeiro tipo (onde morte clínica aparente ocorreu realmente) são certamente mais dramáticos do que os do segundo tipo (nos quais só ocorreu um roçar com a morte). De fato, sempre que faço conferências públicas sobre este fenômeno, os episódios de "morte" são os que invariavelmente provocam mais interesse. Notícias na imprensa às vezes dão a impressão de que são o único tipo de caso com que tenho tratado.

No entanto, ao selecionar os casos apresentados neste livro, evitei a tentação de lidar só com os casos em que ocorreu o evento "morte".

Pois, como se tornará óbvio, casos do segundo tipo não são diferentes, mas formam uma continuidade com os casos do primeiro tipo. Além disso, embora as experiências de quase morte sejam elas próprias notavelmente similares, tanto as circunstâncias que as rodeiam como as pessoas que as descrevem variam consideravelmente. Assim sendo, tentei dar uma amostra das experiências que refletisse adequadamente essas variações. Com essas restrições em mente, vamos agora voltar-nos para a consideração do que pode acontecer, tanto quanto fui capaz de descobrir, durante a experiência de estar morrendo.

RAYMOND MOODY, JR.
Texto de Raymond Moody, Jr. em "Vida Depois da Vida", Nórdica,Rio de Janeiro, 2006, capítulo I. Digitalizado, adaptado e ilustrado para ser postado por Leopoldo Costa.

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